terça-feira, 2 de agosto de 2016

Para que não volte mais: novos romances retratam ditadura militar no Brasil


Rodrigo Casarin

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Escrever para lançar um novo olhar sobre um importante período histórico brasileiro, acrescentando novos recortes e informações. Escrever para expurgar as lembranças mais horríveis. Escrever para que aquele terror nunca mais volte. São esses alguns dos motivos que levam escritores a trabalharem em romances sobre a época da ditadura civil-militar no país, e três novos títulos sobre o assunto chegaram recentemente ao mercado: “Depois da Rua Tutoia”, de Eduardo Reina, “Cabo de Guerra”, de Ivone Benedetti, e “Os Visitantes”, de Bernardo Kucinski.
Publicado pela 11 Editora, “Depois da Rua Tutoia” retrata o sequestro de bebês feitos por agentes da ditadura em São Paulo. Na obra, militares roubam a filha que uma militante dá à luz – ou às trevas – enquanto está presa no DOI-Codi, ação que, evidentemente, traz desdobramentos para a vida da mãe e da criança. “Um país precisa ter sua verdadeira história redescoberta, contada e recontada sobre todos os pontos de vista. Um país sem história, ou só com uma versão da história é pobre”, diz Reina sobre a importância de escrever uma obra que resgate esse tipo de acontecimento.
Com a ressalva de que seu livro não é “sobre a ditadura, mas é uma história de gente que viveu ou poderia ter vivido aquela época”, Ivone, por sua vez, crê que as pessoas precisam dedicar mais tempo a pensar o Brasil. “Cabo de Guerra”, publicado pela Boitempo, traz um “cachorro”, como eram chamados os agentes duplos, pessoas que traíam os movimentos de resistência e se colocavam a serviço dos repressores. Quarenta anos depois, o personagem precisa olhar para sua história e avaliar como suas decisões impactaram na sua própria trajetória e na de terceiros.
“No momento atual, falar sobre a ditadura de 1964, sob qualquer ângulo, é importante para se dimensionar a fragilidade de nossas instituições, a perene instabilidade de nossos mecanismos democráticos. Porque naquela época como agora, nossa deficiente democracia (que é melhor do que qualquer competente ditadura) só sobrevive enquanto interessar às nossas oligarquias”, ressalta a autora.
Kucinski, por sua vez, faz uma espécie de autoconfronto em “Os Visitantes”, lançado pela Companhia das Letras. Suas ficções anteriores, “K: Relato de uma Busca” e “Você Vai Voltar Pra Mim”, estão entre as melhores obras a retratarem o período no qual o Brasil ficou nas mãos de militares. Baseando-se em muitos casos reais e utilizando o nome verdadeiro de certos personagens, o autor foi bastante cobrado por expor e perturbar pessoas alheias a seu trabalho, que preferiam deixar o que aconteceu relegado ao passado. Reflexões sobre essas queixas e a maneira de se retratar a ditadura no país que norteiam “Os Visitantes”.
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Eduardo Reina.
Documentário sobre o sequestro de bebês
Também jornalista, a ideia inicial de Reina ao escrever “Depois da Rua Tutoia” era construir um livro-reportagem sobre o sequestro de bebês por militares ao longo da ditadura. No entanto, conforme as pesquisas avançaram, percebeu que era melhor se basear em episódios reais para arquitetar um romance. “Faltam documentos e provas para sustentar as histórias. Uma pesquisa sobre esse tema cria uma enorme colcha de retalhos, um grande quebra-cabeça, onde faltam exatamente alguns documentos primordiais. Ficam buracos. Por isso optei pela ficção”, conta.
Dessa forma, “Depois da Rua Tutoia” tem capítulos baseados na vida do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que quando vivia em Mauá desenvolveu uma célula da Ação Popular para conscientizar trabalhadores e lutar contra a ditadura, exemplifica o autor. Relatos de presos políticos obtidos a partir de entrevistas e documentos, histórias de conhecidos e experiências vividas pelo próprio Reina também ajudam a compor a obra.
Em meia a tudo isso, claro, casos de bebês sequestrados por militares. “Um deles é de uma empresária que hoje mora no Rio de Janeiro. É filha de um guerrilheiro do Araguaia. Ela descobriu tudo após seus pais adotivos terem morrido. Ela viu uma foto num jornal e se achou muito semelhante com a pessoa, uma filha do guerrilheiro. Foi atrás, fez exame de DNA e descobriu tudo. Por conta própria”.
Agora, com o livro publicado, Reina pretende ampliar as pesquisas sobre o assunto e produzir um documentário a respeito do sequestro de bebês durante a ditadura. “Desde o lançamento do livo já recebi algumas informações que não eram do meu conhecimento. Elas possibilitarão a ampliação do assunto e o filme”, relata.
Ivone Benedetti.
Ivone Benedetti.
Ameaça hoje?
Ivone lembra que a ditadura no país foi uma entre 1964 e 1968 e outra após este ano, quando o AI-5 foi assinado e a repressão se tornou ainda mais violenta. Para ela, o clima do primeiro período era parcialmente semelhante ao de hoje. “Sem dúvida, as acusações de corrupção e incompetência para desestabilizar o governo eram praticamente idênticas. O esforço de desestabilização era fomentado por grupos civis (da indústria e das finanças) que vinham se organizando desde muitos anos. O apoio das classes médias, então como agora, foi obtido com intensa propaganda nos meios de comunicação e com a forte participação dos setores mais conservadores da Igreja [Católica]. Nesse aspecto, a única novidade é que, em vez da Igreja, atuam hoje os setores evangélicos retrógrados”.
No entanto, a autora destaca que cada momento também tem suas próprias particularidades. No passado, por exemplo, havia o pavor do avanço comunista (“que hoje não existe, pelo menos entre as pessoas equilibradas”, ressalta) e o apoio ostensivo das Forças Armadas, que por ora se mantém em seus quartéis. Já nos dias de hoje, “o que há de peculiar é a utilização de meios aparentemente legais para derrubar o governo, o que não é possível sem a ativa participação do poder judiciário”.
Voltando a Reina, para ele hoje vivemos uma espécie de sequência do que se passou há algumas décadas. “Os mesmos empresários, algumas das cabeças que possibilitaram a criação do aparelho repressor daquela época, aqueles que passavam o chapéu para angariar fundos para fazer rodar a máquina repressora ainda estão aí, dando as cartas na política e na economia. Não é uma repetição. É uma continuidade”.

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