segunda-feira, 18 de abril de 2016

Leia trecho de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de Martha Batalha

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    Capa do livro "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de Marta Batalha
    Capa do livro "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de Marta Batalha
Leia a seguir o início do primeiro capítulo de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de Martha Batalha, que sai pela Companhia das Letras em abril.
Quando Eurídice Gusmão se casou com Antenor Campelo as saudades que sentia da irmã já tinham se dissipado. Ela já era capaz de manter o sorriso quando ouvia algo engraçado, e podia ler duas páginas de um livro sem levantar a cabeça para pensar onde Guida estaria naquele momento. É verdade que continuava a busca, conferindo nas ruas os rostos femininos, e uma vez teve a certeza de ter visto Guida num bonde rumo a Vila Isabel. Depois essa certeza passou, como todas as outras que teve até então. 
Por que Eurídice e Antenor se casaram ninguém sabe ao certo. Alguns acreditam que as bodas se consumaram porque José Salviano e Manuel da Costa já estavam comprometidos. Outros apontam a doença da tia de Antenor como responsável pela união, já que agora ela não podia mais lavar as roupas do sobrinho com o sabão especial de lavanda, ou preparar a canja de galinha com pedaços transparentes de cebola, porque se Nonô apreciava o gosto de cebola detestava a sua textura, sendo um único pedaço camuflado no feijão capaz de lhe deixar com engulhos e arrotos por uma longa tarde regada a Alka-Seltzer. Há ainda aqueles que acreditam que Eurídice e Antenor de fato se apaixonaram, e que essa paixão durou os três minutos de uma dança a dois num baile de máscaras do Clube Naval.
A questão é que se casaram, com igreja lotada e recepção na casa da noiva. Duzentos bolinhos de bacalhau, dois engradados de cerveja e uma garrafa de champanhe para o brinde na hora do bolo. Um vizinho professor de violino se ofereceu para tocar na festa. Cadeiras foram empurradas contra a parede, para
os casais dançarem uma valsa.
Não havia muitas moças na festa, porque Eurídice não tinha amigas. Havia duas tias não muito velhas, uma vizinha não muito vistosa, uma outra não muito simpática. A jovem mais bonita estava na imagem do único porta-retratos da sala.
"Quem é a moça da foto?", perguntou um amigo do noivo.
Antenor cutucou o amigo, disse que aqueles não eram modos. O moço ficou sem graça, olhou para os lados, olhou para o copo na mão. Deixou a cerveja na mesa e foi para a outra ponta da sala.
Foi uma cerimônia simples, seguida por uma festa simples, e por uma lua de mel complicada. O lençol não ficou sujo, e Antenor se indignou.
"Por onde raios você andou?"
"Eu não andei por canto algum."
"Ah, andou, mulher."
"Não, não andei."
"Não me venha com desculpas, você sabe muito bem o que deveríamos ter visto aqui."
"Sim, eu sei, minha irmã me explicou."
"Vagabunda. Eu me casei com uma vagabunda."
"Não fale assim, Antenor."
"Pois falo e repito. Vagabunda, vagabunda, vagabunda."
Sozinha na cama, corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabunda que ouviu, pelos vagabunda que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro entre as pernas e depois no coração.
Nas semanas seguintes a coisa acalmou, e Antenor achou que não precisava devolver a mulher. Ela sabia desaparecer com os pedaços de cebola, lavava e passava muito bem, falava pouco e tinha um traseiro bonito. Além do mais, o incidente da noite de núpcias serviu para deixá-lo mais alto, fazendo com que precisasse baixar a cabeça ao se dirigir à esposa. Lá de baixo Eurídice aceitava. Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras "Do lar".
Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! 
Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!
Responsável pelo aumento de cem por cento do núcleo em menos de dois anos, Eurídice achou que era hora de se aposentar da parte física de seus deveres matrimoniais. Tentou explicar a decisão para Antenor, através de umas indisposições que passou a ter, nas horas soltas das manhãs de sábado e naqueles momentos
escuros, depois das nove da noite. Mas Antenor não queria saber de não me toques. Ele era um homem de hábitos e de rotinas, como aquela que envolvia achegar-se à camisola da mulher e afundar o nariz no macio do pescoço branco. Eurídice então se fez ouvir de outras formas. Ganhou um monte de quilos que
falavam por si, e gritavam para Antenor se afastar.
Ela emendava o café da manhã no lanche das dez, o almoço no lanche das quatro e o jantar na ceia das nove. Intervalos eram preenchidos com as sobras de papinhas e as provas de comida, para saber se tinha muito ou pouco sal, muito ou pouco açúcar, muito ou pouco gosto. Ganhou três queixos, essa Eurídice. Parece que seus olhos diminuíram, e seus cabelos não eram suficientes para emoldurar tantas feições. Quando viu que estava no ponto, que era o ponto de fazer o marido nunca mais se aproximar, adotou formas saudáveis de alimentação. Fazia dieta nas manhãs de segunda-feira e no intervalo entre as refeições.
O peso de Eurídice se estabilizou, bem como a rotina da família Gusmão Campelo. Antenor saía para o trabalho, os filhos saíam para a escola e Eurídice ficava em casa, moendo carne e remoendo os pensamentos estéreis que faziam da sua uma vida infeliz. Ela não tinha emprego, ela já tinha ido para a escola, e como preencher as horas do dia depois de arrumar as camas, regar as plantas, varrer a sala, lavar a roupa, temperar o feijão, refogar o arroz, preparar o suflê e fritar os bifes?
Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos.

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