CONTO DE UM AMOR SEM LIMITES
Faltavam
poucas horas para tudo, definitivamente, acabar. Poucas horas, então, tudo
aquilo se transformaria em lembranças. Boas. Ruins. Mas, somente, lembranças.
De
repente, tudo desapareceria. Para sempre. Todo sempre. As ruas. As casas. As
praças. Tudo seria engolido pelas águas. Logo, a cidade transformar-se-ia em
história. Submersa. Solitária no fundo de uma imensidão sem fim de água.
O
progresso é cruel. Não há sentimentos, portanto, não há compaixão. O país
precisa de energia elétrica. Precisa crescer. A usina hidrelétrica estava
pronta. Em poucas horas as comportas se fechariam. E tudo o que ali estava, desapareceria
por completo. Desapareceria para sempre. Tudo se transformaria em um mar de
água doce. Um grande mar de água doce que traria conforto e progresso, para
milhares, milhões de pessoas.
Por
isso, a cidade estava fazia. Totalmente deserta. Só restavam lembranças.
Histórias passadas. Vividas. Fantasmas de um povo, que viveu por centenas de
anos, e, que foi obrigado a abandonar as suas casas. Seus lares. Suas vidas.
Suas histórias.
No
silêncio da cidade morta. Um barulho. Um barulho?
Dona
Menina esta sentada em sua cadeira de balanço, na varanda de sua casa. O
barulho é do balanço, que, incansável, vai de um lado para o outro. De um lado
para o outro. De um lado para outro.
O
tempo passa. Esgota-se. E dona menina a balançar. Alheia a tudo, dona Menina
vai de um lado para outro, de um lado para outro.
Mas,
há um problema, dona menina não esta alheia a tudo. Pelo contrário, dona menina
esta muito ciente de tudo. Sabe que o tempo é curto. Sabe que em horas, tudo
não passará de história. Lembranças do que um dia foi. Mas, mesmo assim, esta
lá, sentada em sua cadeira de balanço indo e voltando, indo e voltando, a balançar.
A esperar. Ela não espera a morte. Apesar da morte ser um ser iminente, ela,
não a espera. Ela espera algo mais importante. Algo que esperou por sua vida
inteira. E não arredará o pé, antes, que este chegue.
Vizinhos.
Amigos. Os poucos familiares que lhe restaram. Até o prefeito veio até dona Menina
a fim de persuadi-la a sair dali. Mas, em vão. Então, sendo mulher feita,
consciente e sabedora dos infortúnios que aguardam-na, foi abandonada à própria
sorte, ou, a sua própria vontade. Afinal só ela pode se salvar.
Aos
75 anos, dona Menina passara a sua vida inteira, ali, sentada na varanda a
esperar. A olhar para o horizonte perdido. Em sua cadeira de balanço de um lado
para outro, de um lado para outro.
Olhando
o horizonte, relembra os bons e maus momentos que vivera. Lembra-se do amor de
sua vida. Aquele a quem ela se entregou, de corpo, alma e coração. Aquele a
quem amou todos os dias da sua vida. Aquele, que, por covardia, perdeu.
Olhando
para o horizonte sem fim, espera. Espera a chegada daquele que foi o fruto do
seu amor. Resultado de um amor que nem o tempo conseguiu apagar.
Dona
Menina era jovem e bela, a mais bela da cidade. Naquela época era a única
mulher na cidade com formação superior, fruto de vários anos na capital do
estado. Bom partido, o melhor da cidade, vivia sendo cortejada pelos homens.
Homens ricos, influentes. Homens considerados de bem.
Mas,
dona Menina, não podia mandar no coração, aliás, ninguém consegue fazê-lo, por
isso, apesar de inúmeros pretendentes, Menina apaixonou-se por um homem de fora
da cidade. Um forasteiro como diziam, os moradores.
Foi
amor à primeira vista.
De
repente, estava apaixonada.
Estavam
apaixonados. Perdidamente apaixonados.
A
guerra começou. Todos eram contra o namoro de Menina, que brigou, lutou, fez chover,
mas, não conseguiu demovê-los, não conseguiu a aprovação da família quanto ao
seu namoro e as reais intenções de seu namorado.
“É
um vagabundo!” – dizia o pai – “Uma pessoa sem eira nem beira.”
“Ele
só quer brincar com você, Menina.” – completava a mãe – “Será que só você não
vê?” “Será que você não percebe isso?”.
Mas,
Menina não queria nem saber o que os pais diziam, por isso começou a
encontrá-lo às escondidas, na calada da noite. Com a desculpa de ir à reza na
casa de uma ou de outra amiga, saía e se encontrava com seu grande amor. Perdidamente
apaixonada, entregou-se a ele, no dia, a que considerava o dia mais feliz da
sua vida. O dia ao qual nunca se esqueceu. Mesmo com o passar dos anos. Os
muitos anos, sem que nunca, por um dia sequer, se esquecesse daquele dia.
Um
dia, a noticia, ele iria embora. Teria que ir embora. Por causa do seu
envolvimento com Menina, ele fora despedido do emprego, e, ninguém, ninguém na
cidade tinha coragem de lhe contratar, ou melhor, ousava contratá-lo, pois,
todos tinham medo do pai dela.
Naquele
dia ele estava triste, arrasado. Definitivamente acabado. Sem dinheiro e sem
posses teria que ir embora. Deixar a cidade em busca da sua sobrevivência.
Pediu,
para que Menina fosse embora com ele. Disse que a amava e queria casar-se.
Menina pensou, pensou, mas não foi. Não teve coragem de abandonar sua vida, sua
família. Amava aquele homem, era verdade. Amava-o mais do que qualquer pessoa
pudesse imaginar. Mais do que a própria vida. Menina não conseguiu desafiar o
pai. Não tinha forças para isso. Na verdade, não fora criada para isso.
Chorando,
Menina viu-o partir. Para sempre. Viu seu amor, sua felicidade escapar pelos
dedos das mãos como areia fina. Viu-o partir, para nunca mais voltar.
Aquilo
foi demais para Menina, que passou duas, três semanas sem ao menos sair do
quarto. Não conversava com ninguém. Não ouvia ninguém. E comia pouco, muito
pouco. Comia o suficiente para manter-se viva.
De
repente percebeu que algo estranho estava acontecendo com ela. Sentia fraqueza.
Enjôos. De repente percebeu estar grávida. A princípio ficou feliz. Depois, desesperada.
Grávida. Sem um marido. Aquilo seria seu fim. Uma vergonha, para si, e,
principalmente para a sua família.
Devia
ter ido embora, mas, não fora, agora, teria que enfrentar aquela situação de
frente.
A
noticia da gravidez caiu como uma bomba na família. Menina foi ofendida,
humilhada pelos pais. Se perder a virgindade antes do casamento já era motivo
de vergonha na família naquela época, imagina uma gravidez.
Dias
depois, Menina e sua mãe deixaram a cidade com destino à capital. Para que
Menina estudasse, disseram. Meses depois, ela deu a luz a um menino. “A cara do
pai” – pensou – ao receber o filho pela primeira vez em seus braços. Nesse
momento, chorou de alegria. Chorou, também, por lembrar-se dos momentos
maravilhosos que vivera com o pai dele.
Após
o nascimento da criança, Menina e a mãe viveram por um tempo na capital. Tinham
uma vida boa, mas, silenciosa, Menina vivia quase o tempo todo em silêncio.
Quase não conversava com a mãe ou com qualquer outra pessoa que viessem
visitá-las. Vivia para o filho: Banhava-o, amamentava-o, dedicava-se
completamente a ele. Que era a sua alegria. A única alegria que tivera, naquela
infeliz vida.
Em uma
manhã, sua mãe, pediu para ela arrumasse as malas, pois, voltariam para casa.
Menina arrumou tudo e pôs-se a esperar, brincando com o filho que insistia a
sorrir-lhe o tempo todo.
Horas
antes de partir, uma tia chegou à casa. Friamente sua mãe pediu-lhe para a
filha dar o menino à tia. A partir daquele momento ela seria a mãe do filho de
Menina.
Aquilo
deixou Menina desesperada. Ela chorou. Pediu. Implorou. Ameaçou fugir. Mas, não
demoveu a mãe da decisão.
Sem
qualquer ressentimento a tia pegou o filho dos braços de Menina e se foi. A criança chorava desesperadamente, mas, nada
fez com que desistissem de toda a maldade para com Menina e seu filho.
Ao
ver o filho partir, Menina ainda correu atrás do carro onde estavam a tia e o
filho. A tia parou o carro e por um minuto Menina olhou a criança chorando,
que, ao sentir um leve toque das mãos de sua mãe no rosto, parou de chorar. Menina
sabia que aquele seria a ultima vez que veria seu filho, então fez um pedido a
tia; Pediu para que ela falasse ao seu filho sobre ela. Que dissesse a ele que
ela o amava, e que ele nunca fora abandonado. Pediu a tia para que um dia ela o
deixasse conhecê-la. Vendo o desespero da sobrinha ela aceitou. Fez-lhe uma
promessa. E se foi.
Desde
então Dona Menina vive ali, sentada a esperar. A esperar pelo filho que nunca
veio. Não até aquele momento, mas ela sabia que um dia ele viria. Viria vê-la.
Então abraçá-lo-ia. Beijá-lo-ia. Far-lhe-ia inúmeras declarações de amor.
Esperando
pelo filho, Menina foi vivendo ali, dia após dia, todos os dias de sua vida.
Acompanhou
a morte dos pais. Dos irmãos mais velhos. E esperou.
Sempre olhando o horizonte e
a balançar. Vai e vem. Vem e vai. Sempre olhando o horizonte e a esperar.
Esperar, pelo filho amado. Único fruto de um grande e verdadeiro amor. Único
fruto, do seu amor.
E mesmo
com a iminência da morte, não conseguia sair dali.
“E
se ele viesse logo hoje – pensava – E não me encontrasse?” “Poderia achar que
eu não o amo”. “Poderia pensar que eu realmente o abandonei”.
Nada
passava na sua cabeça, além da volta do filho para os seus braços. Aquela
criatura frágil, pequena, tão indefesa. Que agora, imaginava, seria um
homenzarrão. Lindo, forte, cheio de saúde. Com uma família linda. Filhos.
Netos. Logo ele estaria ali, no seu portão. Então, este, seria o dia mais feliz
da sua vida. Mais feliz. Por isso, não podia sair dali, prometera que estaria a
sua espera. Prometera. E promessa é dívida.
Não
quebraria uma promessa. Principalmente a promessa feita ao seu filho tão amado.
De
repente, no meio daquele silêncio todo, um barulho ensurdecedor. Depois, outro.
E mais outro. O fim se aproximara. O fim da cidade. Da história. Dos sonhos. O
fim de Dona Menina estava chegando.
Então,
uma criança chega ao seu portão. Ela olha e sorri. Um sorriso lindo. Cheio de
vida. O menino abre o portão e corre para os braços de Menina, que o abraça e o
beija amavelmente.
- Eu
sabia que você viria... – diz ela aos
prantos – Eu sabia.
Outro
barulho, então, o fim! A água toma conta de tudo, sem dó, nem piedade. Em
segundos, tudo se esvai para sempre, submerso na imensidão azul de água doce.
Marc Souza
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